sábado, 16 de dezembro de 2017

A Vida Intelectual - Antonin-Gilbert Sertillanges


 "A Vida Intelectual", obra produzida em 1934 pelo frade dominicano de filosofia neo-tomista Antonin-Gilbert Sertillanges (nascido Antonin-Dalmace, o que explica o A.D na capa do
livro) é essencial pra quem se sente chamado à "vocação intelectual". Essencial, pois o autor radiograficamente diagnostica as principais tendencias viciosas que podem impedir essa pessoa de alcançar a plenitude por meio desta vocação, e além de tudo lhes dá o antídoto, ensinando a buscar a sabedoria por meio dos estudos de modo seguro e eficaz.
 Neo-Tomista como era, Sertillanges começa seu livro explicando o seu objeto: o vocacionado à vida intelectual. Afinal, de que se trata essa vocação? Ele explica que algumas pessoas se sentem chamadas a viver uma vida de estudos, e esse chamado é literalmente uma vocação, é um chamado. Todo ser humano é chamado a viver de um determinado modo, seja ele o matrimônio, o celibato consagrado, o sacerdócio, a vida monastica. Existe também a vocação universal, que é a vocação universal à santidade, à perfeição cristã. E por fim, existem as vocações "menores", que expressam aquilo pro qual a pessoa leva jeito, como Mozart levava jeito para a música ou Pelé pro futebol. Algumas pessoas "levam jeito" para serem intelectuais, e o autor ensina que possivelmente essas pessoas jamais ficarão satisfeita vivendo uma vida incoerente com tal tendência.

 Claro que não é trivial discernir a vocação, sobretudo porque aqui no nosso país o próprio fato de precisar estudar é visto como um fardo e como mero meio de se obter um ganha-pão e tal atitude pode vir a envenenar a mente dos vocacionados. Entretanto, o vocacionado sentirá dentro de si um amor ao estudo, ao aprendizado e também se perceberá melhor nisso do que a média. O ideal é que uma pessoa que sinta isso trabalhe naquilo que é boa, ou seja, o ideal seria que ela pudesse viver de seus estudos (e dos trabalhos decorrentes destes). Claro que a não ser que o sujeito se enfurne no meio acadêmico (o que não é fácil pra quem não teve oportunidades) é difícil conseguir viver disso. Mas o mais importante é o ardor, a vontade de estudar e produzir: o sujeito pode viver essa vocação de modo mais pleno que um acadêmico se se dedicar por algumas horas, com ardor, à atividade intelectual após o trabalho que realiza para ganhar o seu pão de cada dia. 
 Entretanto o intelectual não pode ser descrito apenas como um sujeito que "gosta de estudar", pois até mesmo esse gosto pode desaparecer se as virtudes necessárias não forem cultivadas. Para se fazer qualquer coisa direito, deve-se ter virtudes, deve-se combater os vícios que nos seguram e nos tornam menos homens e mais animais. Até um sujeito muito talentoso pode virar um zé-ninguem se começar a andar com os zé-droguinhas trepa-trepa da universidade. Estudar é uma tarefa ardua, e as letras não excitam o espírito: um sujeito luxurioso, que pensa besteira a cada segundo, ou um sujeito preguiçoso, que se enfastia só de pensar em estudar, não chegarão nisso muito longe. Os sete vícios capitais devem ser combatidos.
 Além disso, o intelectual precisa ter a virtude própria de sua vocação, a estudiosidade. Santo Tomás subordinava tal virtude à temperança, ou seja, o bom estudante sabe dosar bem as coisas, ele é organizado, ele não se descontrola estudando uma madrugada a toa pra uma prova pra depois passar dias sem estudar. Um bom estudante deve cuidar do seu corpo: já dizia o estagirita, "corpo são, mente sã". Ele deve ter uma vida além dos estudos, ele tem obrigação de ser um bom pai, uma boa mãe, um bom filho. Ele tem obrigação a ser caridoso, a ser bom para os outros, pois essa obrigação se estende a todos os seres humanos. Ele não deve se isolar, esquecendo-se de que os livros falam de coisas que são abstraídas do mundo: o livro remete à realidade, e compreende-la é que é objetivo dele. 
 Duas coisas são contrárias à estudiosidade: a negligência (óbvio, pois nenhum intelectual se torna intelectual sem estudar) e a vã curiosidade (é, faz mal ficar como um idiota lendo artigos na wikipédia a esmo só pra ver mais ou menos o que significa isso ou aquilo sem ter real intenção de aprender aquilo). 
 No capítulo III, o autor ensina algumas maximas de organização de vida: viva uma vida simples, sem muitas pompas e obrigações vãs que só servem para atravancar o pleno desenvolvimento do indivíduo. Viva a solidão, o que é diferente de se isolar: o homem solitário é aquele que toca sem ser tocado, como os anjos, é o sujeito que não se desumaniza no contato com outros seres humanos, ele não é tomado pelo espírito de rebanho, que faz com que um grande ajuntamento de pessoas seja muito mais burro do que cada um dos sujeitos individualmente. Guardar a solidão é estar constantemente em presença de si mesmo, julgando-se e vendo o que deve ser melhorado e piorado: guardar a solidão é não ligar o piloto automático e viver no modo bicho, é ser silêncioso, calmo e ponderar os próprios atos,  é alcamar a si mesmo de dentro pra fora.
 Tendo percebido a vocação, buscado as virtudes necessárias e organizado a vida, o proximo passo é o trabalho: este deve ser contínuo. O autor usa o termo "trabalhai sem cessar". Ora, a vontade de amar e servir a Deus é de fato orar sem cessar, e portanto a vontade de buscar à Sua Verdade é "trabalhar sem cessar', ao menos no sentido intelectual. O sujeito não precisa (nem deve!) passar o tempo todo estudando, mas deve desejar estudar e aprender o tempo todo. Ele deve se "espantar diante do mundo", como dizia Aristóteles. O autor critica muito àqueles que passam o dia todo estudando de modo meia boca, distraindo-se até mesmo com as moscas que voam ao longe. É melhor estudar menos e com dedicação plena do que passar o dia todo estudando as meias, pois alguém que faz isso nem estuda, nem descansa, só perde tempo. 
 No capítulo V, o autor dá um quadro ideal de estudos para o aluno: ele deve saber de tudo um pouco (o que ele chama de "ciências comparadas") para saber onde cavar, mas deve cavar. Todo mundo deve ser um especialista com espírito de generalista: estudar algo a fundo mas saber um pouco de tudo. Claro, nesse contexto alguns acabam se tornando céticos, pois não parece haver uma coerência nos saberes, existe a falsa impressão de que as coisas se contradizem. Ele recomenda para "colar" o espírito uma boa dose de filosofia tomista para conseguir colocar todas as ciências em seu devido lugar e faze-las parte de um todo coeso. Acima de tudo, acima da filosofia, a teologia. Todos os saberes são hierarquizáveis, e Aristóteles já os hierarquizou a 2300 anos atrás.
 Com relação à especialidade, o conselho é simples: não dá pra se especializar em tudo! Você é um homem só, não deve querer ser legião, deve ser humilde. Estude algo a fundo, algo que lhe apeteça, e não perca o resto de vista: eis um imperativo.
 Para bem trabalhar, o sujeito deve estudar com afinco, com ardor, e não por obrigação. Nesse sentido, o modelo universitário de disciplinas deixa a desejar, pois exige que o aluno vá em um ritmo que não é dele e pegue o terrivel hábito de "estudar pra prova", que é uma verdadeira desgraça. Claro, outra coisa que contraria esse ardor é a preguiça: o sujeito não deve ver o estudo com enfastio. Uma boa dica que ele dá com relação à isso é a de "variar as culturas", ou seja, estude outras coisas além de sua especialidade, para que você se dedique a elas quando você de fato se cansar de um determinado assunto. Assim, você caminhará sempre pra frente, nunca para trás.
 Um estudioso deve ser virtuoso, repito. Isso é necessário pois o estudioso busca a verdade, e a busca honestamente: pois isso a virtude é necessária nesse contexto, pois um sujeito vicioso não aceitará a verdade se ela for contra algum de seus tortos princípios. O importante é estar pronto para aceitar a verdade à todo custo. 
 Feito isso, vem a pergunta: como se preparar pra produzir algo? Isso que foi dito anteriormente se refere principalmente ao estudo. No capítulo VII, o autor explica como o sujeito deve preparar-se para tornar frutífero tudo o que ele estudou. Seus conselhos são: leia somente o que for edificante (pois sua mente pode ficar cheia de porcarias inuteis depois e ler essas coisas vai apenas te enfastiar) e leia cada tipo de coisa com um espírito diferente. O autor diferencia quatro tipos de leituras, as formativas (que você lê aceitando e ponderando o que o autor lê para botar aquilo em prática de fato em sua vida intelectual), as ocasionais (que você lê por ocasião, por precisar de algum conceito ensinado naquele livro), as de estímulo (que servem para anima-lo, fazendo-o perceber porque você faz o que faz em primeiro lugar) e as de repouso (que são livros lidos por diversão, para gerar alegria, que é a única coisa que realmente faz descansar, segundo Sto. Tomás). Claro que neste ultimo não vale esculachar, lendo algo muito complicado ou algo imoral.
 Uma outra dica interessante é a do "trato com o gênio": ele ensina que ler sobre a vida daqueles que lhe inspiram é sempre edificante. E por fim, ele ensina a conciliar em vez de opor, buscando a verdade e não olhando quem a diz, e pode-se ter certeza que todo grande gênio que algo a nos ensinar.
 Ele também ensina macetes de estudo, ensinando que um especialista em dada área deve saber de cor coisas que devem ser sabidas por todo homem e também coisas que são específicas de sua área. Claro que a memória tem limites, mesmo quando a forçamos a decorar algo, e aí entram as notas: sólidas extensões de nosso cérebro, que embora de acesso mais complicado, são muito mais perenes. Ele dá na seção C do capítulo VII um bom guia de como usar notas (fichamento) para se estudar, coisa que muito concurseiro faz hoje em dia.
 Claro, no capítulo VIII vemos pra que serve tudo isso: pra produzir uma obra. Para tal, é necessário perseverar até o fim, buscar fazer tudo bem feito e não ir além das próprias forças, pois nenhuma obra vale um homem. É necessário trabalhar com constância, pois devagar se vai ao longe se não se parar toda hora. É necessário ter paciência, pois muitas vezes algo é complicado e demora pra ser compreendido, muitas vezes sua cabeça não está funcionando direito e lhe causa a impressão de que você não é mais capaz de nada . É necessário ter perseverança, pois em alguns momentos tudo parecerá muito difícil e árido, e você se perguntará se é pra aquilo mesmo que você nasceu (ele inclusive diz que é comum que intelectual invejem trabalhadores braçais, o que é engraçado, pois os trabalhadores braçais usualmente acham que um estudioso fica o dia de inteiro de boa, em paz e com o traseiro sentado numa confortável poltrona). Fazendo isso, o sujeito, com a graça de Deus, conseguirá levar a cabo sua obra e assim dar uma pequena contribuição pro todo de conhecimento que temos hoje, conhecimento que pelas causas remete ao Criador que as transcende todas.
 Por fim, no ultimo capítulo ele trata do trato do intelectual com a vida: é até difícil (não só nessa parte, mas no decorrer do texto) não fazer citações do próprio livro, pois o autor escreve de uma maneira altamente inspirada, escrevendo frases de efeito a cada página. Ele ensina que o estudo é um ato de vida, e ninguem deve deixar de viver para estudar (lembrando que com isso ele não dá carta branca pra uma vida degenerada: o que ele explica aqui é que existem outras obrigações na vida que devem ser cumpridas). Ele ensina que o homem deve saber se distrair, e muitas vezes essa distração é dada simplesmente pela mudança de atividade: um estudioso pode estudar lavando a louça ou ensaiando para um coral, por exemplo. Independente de como acontecer tal distração, o importante é que ela ocorra, pois não há possibilidade de uma pessoa trabalhar bem todo dia sem descanso, sobretudo se o trabalho for intelectual, pois este é muito dispendioso. As dicas que ele dá nesse capítulo se estendem também à pessoas não vocacionadas à intelectualidade, pois são coisas comuns à todos os homens: saber aceitar as provações e saborear as alegrias de uma vida possivelmente simples e cheia de vida de um dia a dia rotineiro. Desse finalzinho, retirei a frase do meu TCC: "a recompensa duma obra é conclui-la, a recompensa do esforço é o ter crescido".

 É um livro que recomendo à todos que gostam de estudar. É óbvio que num breve resumo deixo muito de fora, mas a quantidade de informações é tão rica (e o todo do livro é tão orgânico, tão grave e tudo tem tanta necessidade) que apenas com a leitura dele se aproveita tudo. É um dos livros mais importantes de minha vida, pois me ensina a como viver a vocação pra qual eu sinto que fui chamado, e me ensina a fazer isso nos detalhes mais mínimos! Vejo esse livro como um "manual de instruções pra vida" , um verdadeiro livro formador, e espero me configurar mais e mais à figura do intelectual expressa por ele, pois "a essência da santidade e da intelectualidade é a mesma". É se Deus te fez desejar ser um intelectual, é porque este é um dos meios que ele colocou para a sua santificação. Não tema se você for esquisitão! Talvez essa seja a vida que Deus deseja pra você!

 "Se fizeres isto produzirá frutos e alcançará o que desejais"
 ADEUS.



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